quarta-feira, 14 de outubro de 2015


REFLEXÃO ACERCA DE LEITURA E LEITORES

Maria Divanira de Lima Arcoverde
Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

Refletir sobre leitura e leitores nos faz pensar em um leque de ações que envolvem este tema. Neste sentido, é notório que já faz parte do senso comum, que compete à escola formar leitores, concebendo-se a instituição escolar como principal agência de letramento. Além disso, espera-se que ao sair da escola os alunos tenham adquirido, não só a competência leitora, mas também, o hábito de ler, o que não acontece, geralmente, levando-se em consideração que as pesquisas têm demonstrado um trabalho de leitura associado a questões ideológicas. O aluno tem que provar que sabe ler e passar pelo julgamento do professor que o submete a práticas avaliativas. Como afirma Nunes (1998, p.27),

“no discurso escolar ocorre a simulação de discursos outros que o constituem, ou seja, o discurso escolar apresenta um seu exterior específico [...] que distingue três instâncias determinantes de leitura: a do jurídico, a do econômico e a do político.”

Esse complexo ideológico constitui um espaço contraditório, onde estão imbricadas práticas escolares e outras práticas vigentes em nossa sociedade, de modo que as condições de leitura estão vinculadas quase sempre ao livro didático, cujo leitor é moldado pela instituição.
Dessa forma, é interessante que vejamos a leitura e suas funções sociais como prática fundamental para o exercício da cidadania. Já não podemos conceber que a “cada ano, avaliações de diferentes portes deem conta de que no Brasil a escola venha falhando na sua função de formar leitores”. (ANTUNES, 2009, p.185).
Revendo a nossa caminhada como professora de Língua Portuguesa e analisando as causas desse problema, percebemos que o livro ainda não é o centro das atenções, nem tampouco considerado devidamente como um bem cultural. Diante dessa realidade, é inconcebível cruzar os braços frente à essa evidência, bem como atribuir apenas à escola a exclusividade de desenvolver essa prática leitora. Podemos, conforme orienta Perrenoud (2000, p. 15), desenvolver “a aptidão dos sujeitos para ligar os saberes que adquiriram ao longo da vida às situações da experiência, a fim de que pelo recurso a esses saberes, vivenciar essas experiências de forma gratificante e eficaz”. Assim, saberes e competências funcionarão numa relação clara de inclusão. No dizer de Perrenoud, a competência supõe a articulação do saber já acumulado com as condições específicas das situações enfrentadas. Vale a pena, então, questionar que competências a leitura desenvolve? Encontramos em Antunes, (2009, p. 193) a resposta ideal. ”A leitura permite o acesso ao imenso acervo cultural constituído ao longo da história dos povos e possibilita, assim, a ampliação de novos repertórios de informação”.
Para esta autora, a leitura nos proporciona a descoberta de novas ideias, novas concepções, perspectivas e diferentes informações acerca do mundo, das pessoas, da história dos homens. A leitura expressa o respeito ao princípio democrático de que todos têm direito à informação e acesso aos bens culturais já produzidos. A leitura confere, ainda, o poder de enxergar e perceber o que nos circunda, a fim de que, como cidadãos, assumamos nossos diferentes papéis na construção de uma sociedade que respeite a lógica do bem coletivo e dos valores humanos.
Somos sabedores de que ler é partilhar conhecimentos, e como tal, é interagir com o outro e afirmar-se como sujeito histórico/social. Seduzir alguém ao encantamento da leitura como atividade social, de forma que se instaure a interação entre o escritor e o leitor, que estão aparentemente distantes, mas que querem se comunicar é preciso! É necessário, ainda, abrir caminhos para a prática social da leitura fora dos bancos escolares, na certeza de que isto significa o exercício da partilha do poder. Como afirma Chico Buarque: “A vida não gosta de esperar! Amanhã ninguém sabe...
Nesta perspectiva, é correto reconhecer que não se pode negar a preocupação dos órgãos públicos, em desenvolver uma política que amplie a função social da escola como principal agência de letramento, em programas oficiais do MEC, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa (1996) e outros.
Inegável, também, as variadas propostas de incentivo à leitura promovidas em todo o país. Entre programas, projetos e campanhas podem ser citados alguns. Nos anos 70, o Governo Federal implantou o projeto de financiamento de publicações de obras literárias, por intermédio do Instituto Nacional do Livro.  Uma política de co-edições que patrocinava parte do custo de produção de textos, responsabilizando-se também pela distribuição de sua cota de livros, suprindo bibliotecas públicas nos estados e municípios. Na década de 80, a Fundação Nacional do Livro, em parceria com a iniciativa privada, patrocinou projetos que consistia em ampliar o acervo de livros das escolas. No período de 1982 a 1985, com o apoio da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, foi desenvolvido o projeto “Ciranda de Livros”, patrocinado pela Hoeschst do Brasil, Fundação Roberto Marinho e Fundação Nacional do Livro, quando foram distribuídos livros para trinta mil escolas da rede pública de todo país. Em 1987 e 1988, o projeto “Viagem da Leitura” oportunizou a distribuição de livros de literatura para bibliotecas públicas conveniadas ao Instituto Nacional do Livro. O projeto “Sala de Leitura”, resultado da parceria com a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) e o MEC garantiu nas escolas de todo o país a distribuição de livros didáticos e de literatura. O projeto pretendia combater o modelo tradicional das bibliotecas por uma prática democrática de leitura, de forma flexível. Em 2001, foi criado o Projeto “Literatura em Minha Casa” com o objetivo de integrar os espaços educacionais e culturais, escola e família. O inovador nesse projeto foi a oportunidade que o aluno tinha de compartilhar as leituras dos livros com seus familiares. Conforme dados do MEC, este projeto foi o de maior envergadura e a maior compra de livros já realizada no Brasil. (SITE DO MEC. ACESSO em 20/05/09).
Programas como o PROLER e o PROLEITURA, implementados na década de noventa, também trabalharam com ações básicas, visando à constituição de uma sociedade leitora numa troca de experiências de leitura, através da formação de uma Rede Nacional de Leitura. Diferente dos projetos, esses programas não tinham por objetivo a distribuição de livros, mas a formação de recursos humanos e assessoria às ações regionalizadas de promoção á leitura.
Essas e outras ações têm beneficiado o Estado da Paraíba. No entanto, nunca é demais esse fazer, frente às condições sócio-históricas que caracterizam seus habitantes. A necessidade de sistematizar a história da leitura, a partir de uma perspectiva que a conceba como prática cultural, portanto, histórica, vai além da compilação e da produção de um acervo, exigindo do historiador a interpretação e a articulação desta prática às esferas das políticas públicas de leitura. (BARBOSA, 2007).
Neste contexto, situamos a pré-existência que povoa o imaginário coletivo, de que qualquer pessoa escolarizada é um sujeito-leitor, isto é, que aprendeu a ler. E isto não é verdade. Sabemos que os fatores responsáveis pelo insucesso da escola no ensino de leitura, embora existam tantos projetos e programas oficiais, é que falta na escola a eficácia de uma metodologia que preveja, não só o aprendizado do ponto de vista formal, mas também o desenvolvimento de práticas leitoras que envolvam o desejo, o gosto e a necessidade de ler. Barthes (1973), em “O prazer de texto”, compara o leitor a uma aranha que, ao mesmo tempo em que tece, segrega a substância com a qual vai tecendo a sua teia. Assim também, o leitor à medida que lê projeta sobre o texto seus conhecimentos de mundo, textual e linguístico e tece com o outro suas histórias de leitura. Na visão de Gurgel (1999, p. 209), “o amor e a leitura, porque têm em comum o prazer, requerem um exercício diário de conquista, de envolvimento, de diálogo com o outro”.
Não é redundante, afirmarmos que a leitura nos torna capazes de tecer nossa própria identidade, a partir do outro e com o outro, estabelecendo o processo de cidadania. É preciso, pois, a inserção de uma política que promova a leitura além dos muros escolares, independente do lugar em que esteja o indivíduo ou do contexto sócio-histórico-cultural em que esteja inserido. É necessário, ainda, que se propicie a esse indivíduo o direito de ler, que se forme nele o gosto de ler.
Além do mais, sabendo-se que a leitura como um dos meios que o indivíduo tem de se comunicar com o mundo, ter contatos com novas ideias e pontos de vista, que talvez sua prática jamais lhe proporcionasse, necessário se faz que projetos dessa natureza sejam postos em prática para que se tenha a formação de uma sociedade leitora.
Desta forma, qualquer ação, por incipiente que seja, pode demonstrar o compromisso de qualquer órgão, enquanto Instituição que se preocupa no que fazer, para minorar o “enigma do consumidor esfinge”, cujas fabricações se disseminam na rede da produção televisiva, urbanística e comercial que aos poucos se transforma em puro receptor. Um espelho de um ator multiforme e narcísico (CERTEAU, 1994). Para tanto, é imprescindível que se ampliem essas ações leitoras em projetos mais audaciosos, para que indo além, oportunizem “o voo dos condores no céu”. É bom esclarecer que não desejamos uma operação somente decodificadora, articulada, com base, apenas, em significantes. Desejamos apagar a imagem do livro como uma ilha sempre fora do alcance dos leitores. Pretendemos que o livro deixe de ser privilégio de alguns que o estabelecem como um segredo do qual somente eles tenham direito a “decifrá-lo”. Desejamos que o livro seja visto como um bem cultural de acesso plural.
Neste contexto, enquanto educadora, sonhamos em ver concretizadas propostas de leitura que possam pôr em prática estratégias politizáveis, sem cobranças, sem contas a pagar, sem perguntas para responder, nem julgamentos de valor. No dizer de Certeau (2004, p. 269),

ler é constituir uma cena secreta, lugar onde se entra e de onde se sai à vontade [...]. É produzir jardins que miniaturizam e congregam um mundo, [...] onde os leitores são viajantes, circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria, através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los.
Compreendemos que propostas nesta direção promoveriam a inserção de atividades leitoras no cotidiano das pessoas, em seus domicílios, independente do contexto social em que se insiram.  O importante é que o indivíduo possa exercer o direito de ler, aprenda a ler e adquira o gosto de ler.
Implantar políticas públicas para a formação de uma sociedade leitora é, portanto, dever de todos nós!  Como assevera Barthes, (Op. Cit. 2003. p. 9), “Esse leitor, é mister que eu o procure (que eu o drague) sem saber onde ele está. Não é a pessoa do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo” [...].

– REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Língua, Texto e Ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009.

--------------- Muito Além da Gramática: Por um ensino sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.

-------------- Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: 2003.

BARBOSA, S. de F. P. História da Leitura na Paraíba: Prática e representações. Projeto de Pesquisa. João Pessoa: UFPB, 2007.

BARTHES, R. O prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 1973.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

FREIRE, P. A importância do ato de ler. Em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1993.

GURGEL, M. C. Língua, Texto e Ensino: outra escola possível. In: VALENTE, A. Aulas de Português: Perspectivas inovadoras. Petrópolis, R J: Vozes, 1999.