quinta-feira, 10 de abril de 2008

Lendo Álvares Fernandes

Comentar poemas é uma tarefa que me apraz. É o exercício lúdico/crítico somado a mais uma experiência, oportunizada por pessoas que confiam na minha visão de amante da literatura. Dentre essas pessoas, está Álvaro Fernandes e ler seus poemas é abrir as cortinas de um palco onde autor/ator se confundem, se imbricam, se entrelaçam fazendo " do palco a fonte de energia mais forte e mais pura". Contudo, para o ator/poeta que "imagina o sonho de paz entre os homens" o palco não é apenas seu campo de luta. É na poesia que ele estende todo seu potencial criador, num orgasmo de dor e prazer, transmutado em versos impregnados de sensibilidade poética.
E essa sensibilidade, em impulso criativo, faz com que o poeta pense oniricamente.

"Ontem eu sonhei/ que os homens/ violentaram o branco/ que era a paz/ castraram o verde/ que era a natureza..."

Mas num despertar cruel, ele conclui:
"Assim mataram o sonho/ e devastaram a vida/ Quando o amanhã nasceu/ o
mundo estava despido/ Era João/ sem teto/ sem rima/ sem pão."

A realidade social é introduzida por uma metáfora que desencadeia em reprospectativa nos lexemas anteriores e o processo é referendado pelas relações simbólicas codificadas. Como um marco divisor de águas:
"Os rios que cruzam nossas vidas/ são as águas podres/ das sujeiras dos ricos"

Em "Homem Deserto" o poeta soma os seus silêncios e "solitário, sofrido, caminhando/ querendo gritar o seu grito..." em defesa dos oprimidos, reune em processo intensificador, toda sua preocupação com o social, demonstrando a coragem de quem avança na direção da verdade. Poesia é também denúncia. Os poetas não vivem isolados. Os gestos dos poetas não se divorciam do todo. E na ciranda do cotidiano, vem à tona o problema do menor abandonado, do "menino de rua" que
"só tem ocaso/ se por acaso/ a noite chegar/ chegar sem pão/ de pé no chão..."

A poesia propicia o refletir lírico e sentimental. É nesse refletir que faz brotar no poema "Ansiedade" o tédio que a vida lhe impõe, verdade individual marcada humanamente através da poesia:
"Me aborreço e saio/ A noite está bêbada/ cheia de vômitos, fria",
o que é ratificado nos versos do poema "Caos":
"Um tédio/ invade meu quarto/ no escuro/acendo um cigarro/ a cidade continua dormindo/ tudo é simplismente caos..."

Acompanhando esse tédio, vem o receio de não viver o suficiente, divorciado, porém, do íntimo e intransferível gesto de libertação:
"Não sinto medo/ de rever o amanhã/ Mas,sinto receio/ de não ter vivido tudo de
ontem."

E é esse receio que faz brotar no poeta a extraordinária força poética e humana, em defesa da essencialidade do ser, em contrapartida com o tempo que inexoravelmente passa, quando ele diz:

"Se o relógio/ o calendário/ e o tempo correm/ tenho certeza que vivo/
intensamente cada instante."


A poesia ajuda o homem a se encontrar consigo mesmo em comunhão interior. Álvaro Fernandes dá um mergulho no seu eu mais profundo e desnuda-se nos seus poemas, afirmando: "
"Não tenho caminhos para seguir/ todos eles terminam em mim/ nada de
concreto sei/ Meus abismos são secretos demais/ Neles existo como
sentença".


E com características intrínsecas de sua lírica, o poeta afirma:
"Vou recolher minha alma/ para se despedir da tarde/ e juntos
navegarmos noite a dentro/ mandar as mágoas e as dores/ para o fundo do mar/
depois voar o mais alto/ que puder/ e me misturar com o infinito."


Desta forma, o poeta se elege livremente, isto é, decide ele mesmo sua situação no mundo. E é no mergulhar do seu ser que faz ressurgir o poeta/homem que aprisionado pela solidão, na certeza da efemeridade da vida, suplica seu desejo:
"Rasga minhas roupas/ quero te possuir antes que o dia rompa/ e tu
descubras que tudo foi ontem/ e hoje só restou/ o orgasmo de tudo."


É nessa imersão que ressurge o homem que ama e que sonha, mas que inexplicavelmente vê suas aspirações e desejos nascerem irrealizáveis. Por isso, ele diz:
"Mataram minhas emoções/ assassinaram meus sonhos/ meu âmago acumulou/ todas
as dores do mundo."

Uma ponta de amargura se instaura e o poeta desabafa:
"Tenho sede/ dão-me amargas palavras para beber/ Tenho fome/ dão-me a frieza para saciá-la/ Sinto-me só/ não sou mais multidão"

É nesse ritmo que se esboçam as coordenadas psicológicas e o poeta se sente
"entre a fumaça psíquica/ da neutra sensibilidade humana."

sentindo
"o promíscuo orgasmo imaturo do existir/ numa eterna busca/ de equação
complexa..."

E o poeta grita em êxtase:
"gritos rasgados da alma/ despreendendo as gotas angustiantes do
existir."

Assim é Álvaro Fernandes, poeta da vida e do amor que faz da fala poética "morte e ressurreição da linguagem"; que faz da poesia, teatro e do teatro, poesia.

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